Exposição | 1 de Outubro a 31 de Dezembro de 2021 | 119 Marvila Studios
Marquise de Sá
Cá estou, bem presente, na apanha diária, curvando-me até ao chão de pernas ligeiramente fletidas, braços que se estendem e as mãos que os prolongam. Apanho isto, apanho aquilo, apanho o que está a mais neste chão, procuro com os olhos, ergo o corpo, meto ali e mais para o lado, abaixo no cesto, acima na caixa. Não me dói nada mas penso no que irá doer no futuro. Ainda não consegui ensinar os meus descendentes a cumprir estes movimentos. Não mos ensinaram, aprendi sozinha já muito tarde. A arrumar. Fala o privilégio.
Escolhi estar curvada, ninguém me curvou. Sei dar balanço e erigir o corpo, desdobrando as vértebras lentamente. Sacrum, lombar, dorsal, cervical. Oscilar as ancas, soltar o pélvis, comprimir os gluteos, fixá-los hirtos, colocar-me nas pontas dos pés, mesmo nas pontinhas. Adoro este corpo. Pareço compreendê-lo, surpreende-me, somos dois em um.
Mas o peso, o estigma, a mãe da família numerosa sou eu. Olho para trás para me certificar que ninguém se encontra atrás de mim, sou eu mesma essa coisa. Já vivia fechada e no balanço da rotina de subir e descer a Almirante Reis várias vezes ao dia. A pandemia não nos enclausurou, antes pelo contrário. O privilégio movimentou-nos. Somos cinco, somos cinco em um e movimentamo-nos. Passei a ser mãe a tempo inteiro, o corpo nunca parou, esteve sempre presente, já eu não sei onde me enfiei, sei apenas que fui e voltei (mais do que uma vez). Olho novamente para trás - não, ninguém atrás de mim - sou eu mesma essa coisa.
Há pausas que nos escolhem a nós, e esta é uma delas.
Aqui estou então visível mas esbatida neste contexto. Cumpro uma espécie de função sem sentir que seja funcional, faço-o mais por intuição. Se tentar aprofundar a descrição daquilo que faço corro o risco de ser prejudicial na luta pela libertação destas tarefas tão historicamente estereotipadas no género feminino. Querem-me extinta naturalmente, também eu não gosto particularmente destes gestos diários. Sei que não sou bonita de se ver. Presume-se a des/arrumação, a carga doméstica, as crianças que se escondem atrás de mim. Sou irremediável, abdiquei de uma carreira como varanda para me tornar marquise.
Marquise de Sá*
Here I am, clear and present, at the daily harvest, bent to the ground with slightly bowed legs, my outstretched arms prolonged by my hands. I harvest this, I harvest that, I harvest what’s left on the ground, I search with my eyes, I lift up my body, I put it all to the side, nestled in a hamper, stowed away in a box. It doesn’t hurt at all, but I think about what will hurt me down the line. I still haven’t managed to teach my offspring to carry out these movements. We were not taught, I learned myself, much too late. To tidy up. Talk about privilege.
I chose to bend down, no one knocked me to my knees. I know how to balance and straighten my body, slowly unfolding vertebrae. Sacrum, lumbar, dorsal, cervical. To swing my hips, loosen my pelvis, squeeze my buttocks, nice and tight, to get on my tip-toes, up to the very tip. I love this body. I seem to understand it, it amazes me, we are two as one.
But I am the weight, the stigma, the mother of a large family. I check behind my back to make sure no one’s following me, but I only find myself. I was already living a narrow life, caught in the routine of walking up and down Av. Almirante Reis multiple times a day. The pandemic did not make us stuck, quite the opposite. Privilege gave us movement. We were five, we were five in one and we moved ourselves. I became a full-time mother, my body never stopped, it was always present, I don’t know where I stowed myself away, only that I went there and came back (more than once). I check behind me again – no, nobody’s there – it’s all still me.
There are pauses that make us who we are, and this is one of them.
So here I am, visible but faded in this context. I fulfill a kind of function without feeling it’s very functional, I do it more by intuition. If I try to make this description of what I do any more profound, I run the risk of being detrimental to the fight for liberation from these tasks so historically deemed as feminine. They want to get rid of me naturally; I don’t particularly like these daily gestures either. I know that I am not beautiful to behold. An un/tidiness is assumed, a household load, children hiding behind my back. I am beyond repair, I gave up my career as a balcony to become a marquise.
*A marquise, a sort of enclosed balcony, is a common sight on apartment buildings in Lisbon, including the downtown area around Av. Almirante Reis. The structure is a cultural phenomenon in the Portuguese urban landscape, and its inconsistent appearance (many marquises are custom-built by their owners) can give apartment blocks a certain feeling of disenchantment.